01/05/11

A Barca dos Sete Lemes


A partir do momento em que, por volta dos meus quinze anos, descobri «Gaibéus» e, através de «Gaibéus», descobri a leitura (conforme já contei aqui) comecei a ler, prefencialmente, obras dos escritores ligados ao Neo-Realismo. Nos anos seguintes, li dezenas de obras dos portugueses Soeiro Pereira Gomes, Alves Redol, Ferreira de Castro, Fernando Namora, Manuel da Fonseca, José Gomes Ferreira, bem como de autores lusófonos com afinidades temáticas, como o angolano Luandino Vieira e os brasileiros Garcilano Ramos, Eurico Veríssimo e o inevitável Jorge Amado.



Apesar da minha memória ser tão fraca que me permite encontrar surpresas em segundas e terceiras leituras dos mesmos livros, ficou-me, desde essa altura, a ideia de que um desses muitos livros tinha provocado em mim uma impressão muito especial. Trata-se do romance «A Barca dos Sete Lemes», de Alves Redol.



O livro está completamente esgotado no actual mercado livreiro, onde quase todos os espaços e atenções das livrarias são absorvidos pela literatura efémera que “vai vendendo mais ou menos”. Aliás, julgo não cometer grande injustiça se afirmar que, de todos os autores que acima referi, apenas Jorge Amado e Soeiro Pereira Gomes são devidamente acarinhados pelas suas editoras, ainda que por razões bem diversas.



Há algumas semanas, em vésperas de ir a Vila Franca de Xira para visitar o Museu do Neo-Realismo, decidi voltar a navegar nesta barca de Redol. Depois de muito procurar, desci à deslumbrante cave do alfarrabista «Chaminé da Mota» e comprei (por sinal, barato) um exemplar da edição de capa dura produzida pelas Publicações Europa-América em 1972.



Desta releitura, feita mais de trinta anos depois, saí com a confirmação de que, tal como senti na primeira leitura, «A Barca dos Sete Lemes» é um inequívoco desmentido aos que acusam o Neo-Realismo de esboçar personagens lineares, esquematicamente positivas ou negativas, condicionadas de forma mecânica em função de posicionamentos socias ou de opções políticas.



Conforme escreve Alexandre Pinheiro Torres, no prefácio, o título poderia ser «A Arte de Transformar um Homem do Povo num Carrasco». Ao longo da sua existência, Alcides voga de situação para situação, como uma barca à deriva, empurrado pelas circunstâncias e pelas pessoas com poder. Em cada uma das voltas da vida, recebe novas alcunhas – de Menino Jesus a Chacal - e vão-lhe sendo atribuídos novos papeis de executante de acções cada vez mais repulsivas e violentas.



Escavando numa personalidade em conflito consigo mesma, por baixo das atitudes do incendiário, do assassino, do criminoso de guerra da Legião Estrangeira, do potencial bufo da Gestapo na França ocupada, Redol consegue fazer aflorar o ser humano; um ser humano intrincadamente contraditório que lança gritos silenciosos de apelo a uma afectividade sempre frustrada. Como diz o autor, “limitei-me à história de um homem de sete alcunhas, cuja vida me sugeriu uma barca desnorteda num mar de tempestade” (p.56).



Os capítulos em que se desenvolve a acção da narrativa alternam com capítulos – designados, justamente, por «os gritos silenciosos» - nos quais a personagem biografada dialoga com o narrador-autor, contando-lhe a sua vida e pedindo-lhe que a escreva porque “as coisas escritas ficam mais importantes” (p. 299). Nesses diálogos sobressaem os conflitos duma personalidade violenta e violentada, mas sobressai, também, o processo pelo qual o narrador-autor vai assimilando a personagem, atribuindo-lhe sentimentos e pulsões irreprimíveis.


Para mim, «A Barca dos Sete Lemes» continua a ser um dos livros de referência. Um romance a merecer reedição, neste ano que é o ano do centenário do nascimento de Alves Redol.

4 comentários:

Graciete Rietsch disse...

Magnífico, Eduardo.
Grande escritor ,ALVES REDOL, que nesse livro nos mostra o que a sociedade pode fazer de uma pessoa.

Um beijo.

Mar Arável disse...

Boa memória

partilhada

Daniel Osiecki disse...

Olá. Bela apreciação de A barca dos sete lemes. Estou lendo esse romance de Alves Redol e é uma narrativa bem mais complexa do que os detratores do Neorrealismo julgam ser. Também adquiri meu livro em uma livraria de usados, e é a mesma edição que você citou. Saudações.

ENFº Enfermo disse...

Iniciei estas férias a minha leitura deste escritor com este livro, 2ª edição autigrafado por ele e anteriormente pertençada de minha avó.Confesso que me tem agradado a forma, o conteúdo e o estilo deste escritor, que por mais tempo que tenha passado continua a ser devidamente moderno e atual.Obrigado pelo seu registo da leitura do autor.Ajudou-me a assimilar melhor a sua forma de se expressar.